A reabertura bem sucedida do mercado de ofertas públicas iniciais (IPO, na sigla em inglês) na Europa foi a última peça do puzzle para a Luz Saúde avançar para a dispersão de capital na Euronext Lisboa, com os resultados das operações mais recentes a darem alento à operadora hospitalar para atingir o objetivo de uma capitalização bolsista acima de mil milhões de euros.
A companhia liderada por Isabel Vaz revelou esta quarta-feira o plano para regressar à bolsa, não tendo publicado ainda os contornos principais da operação, nomeadamente o preço e a parcela do capital que será vendida aos investidores. A oferta contemplará um aumento de capital de 100 milhões de euros, que a Luz Saúde utilizará para reforçar a estrutura da companhia e a “continuação dos seus planos de expansão e crescimento”. Haverá ainda lugar a uma oferta por parte da Fidelidade, que pretende continuar como acionista maioritário.
A meta não oficial da Fidelidade, já noticiado no ano passado, passa por vender entre 30% a 45% do capital da Luz Saúde, levando a companhia a atingir um valor de mercado acima de mil milhões de euros. A meta é ambiciosa, tendo em conta que a companhia saiu de bolsa em 2018 por cerca de metade deste valor e apresenta múltiplos elevados tendo em conta esta avaliação de dez dígitos.
Apesar do desafio, os últimos IPO na Europa foram caracterizados por uma forte procura por parte dos investidores, levando a generalidade dos emitentes a venderem as ações do topo do intervalo pré-definido. O desempenho dos títulos após o IPO também foi animador, o que tem gerado confiança para que mais operações tenham avançado e outras estejam em andamento.
Um relatório recente da PWC dá conta que foram realizados 13 IPO no mercado europeu no primeiro trimestre deste ano, gerando um encaixe de 4,8 mil milhões de euros. Trata-se do valor mais elevado desde o primeiro trimestre de 2021, que embora ainda longe dos montantes registados há três anos, situa-se bem acima dos volumes que se verificaram nos últimos trimestres, em que o mercado esteve praticamente congelado. A nível global a tendência ainda é negativa, com o valor gerado a baixar 6% no primeiro trimestre devido ao mau desempenho do mercado asiático.
“A melhoria das condições macroeconómicas, forte desempenho dos mercados de ações e volatilidade reduzida são condições que suportam uma recuperação sustentada do mercado europeu de IPO em 2024 e próximos anos”, refere a PWC, justificando ainda o otimismo com a carteira de empresas maduras detidas por firmas de private equity e o bom desempenho das ações após a entrada em bolsa.
Entre as quatro maiores operações realizadas este ano na Europa, apenas uma cotada dececionou. Estes foram os IPO de maior dimensão:
- A Galderma protagonizou o maior IPO a nível mundial no primeiro trimestre. A companhia suíça de cosméticos e cremes medicinais entrou em bolsa a 22 de março após vender as ações no ponto mais alto do intervalo, o que gerou um encaixe superior a 2 mil milhões de euros. As ações da Galderma valorizaram perto de 20% desde então, elevando a capitalização bolsista acima dos 15 mil milhões de francos suíços.
- A Douglas foi a maior (e quase única) deceção até agora. As ações da rede de perfumarias foram vendidas na bolsa alemã a 26 euros (ponto mais baixo do intervalo) e desde então cederam 25%. O IPO gerou um encaixe de 889 milhões de euros e foi liderado pela firma de private equity CVC, que terá optado por maximizar o retorno do investimento inicial.
- A gestora do Aeroporto Internacional de Atenas protagonizou o terceiro maior IPO da Europa, numa operação realizada em fevereiro que foi vista como um símbolo do programa de privatizações do governo grego. O IPO que gerou 742 milhões de euros foi o maior em Atenas nos últimos 20 anos. As ações dispararam nos primeiros dias depois de uma procura muito alta dos investidores. Foram vendidas a 8,2 euros, dispararam para 9,2 euros nos primeiros dias, aliviaram posteriormente mas conservam um saldo positivo (+3%).
- O Renk Group concretizou um dos primeiros IPO do ano e o mais bem sucedido até agora. A companhia de defesa alemã (produz as caixas de velocidades dos tanques de guerra Leopard) aproveitou a conjuntura para encaixar 448 milhões com a venda de ações. Os títulos foram alienados a 15 euros cada a 7 de fevereiro e desde então já quase duplicaram de valor.
Estes desempenhos positivos e interesse dos investidores motivaram outras companhias europeias a avançarem com os planos de entrada em bolsa. Cálculos da Bloomberg indicam que empresas avaliadas em 40 mil milhões de dólares vão avançar em breve com os seus IPO. Destaque para a espanhola Puig (dona de marcas como Paco Rabanne e Carolina Herrera), que pretende encaixar 2,5 mil milhões de euros, ou a fabricante italiana de sapatos desportivos Golden Goose, que visa uma avaliação entre 3 e 4 mil milhões de euros.
Contudo, nem todas as notícias são positivas neste mercado. Além do mau desempenho da Douglas na Alemanha, a espanhola Bergé y Compañía cancelou a entrada em bolsa da sua subsidiária de componentes automóveis Astera devido ao fraco interesse dos investidores.
Bolsas e setor em alta
A concretizar-se, o IPO da Luz Saúde acontecerá numa altura em que as bolsas globais negoceiam em máximos históricos e o setor dos cuidados de saúde regista um desempenho positivo. O europeu Stoxx600 valoriza 5,6% em 2024, acumulando uma valorização de 18% desde os mínimos de outubro do ano passado. O Stoxx600 Health Care valoriza 12% no mesmo período e ganha 4,5% este ano.
Vítor Madeira, analista da XTB, refere que “o facto de o mercado acionista encontrar-se em máximos é vantajoso para os IPO, pois o interesse comprador pode ser maior e tende a valorizar mais as empresas”, mas o facto da Luz Saúde “permanecer num setor defensivo poderá retirar interesse por parte dos investidores nesta altura”.
O IPO da Luz Saúde tem a particularidade de trazer para a bolsa nacional uma cotada de um segmento específico inexistente no mercado português e com uma representação muito escassa nas praças europeias. Além disso, “visto ser uma empresa com cash flows bastante constantes e previsíveis”, tem potencial para gerar interesse para os investidores de retalho e institucionais, salienta Vítor Madeira.
Múltiplos elevados
A decisão final de avançar com o IPO será tomada a 30 de abril, quando termina a período de aceitação de ofertas dos investidores, sendo que também será nessa altura que será definido o preço de venda das ações. Segundo apurou o ECO, a estreia está prevista para 3 de maio e só aí se saberá se será atingido o objetivo de atingir uma capitalização bolsista de mil milhões de euros.
A falta de cotadas comparáveis dificulta a avaliação através de múltiplos, mas os rácios das companhias do setor dos cuidados de saúde mostram que a meta pode ser desafiante. A Luz Saúde terminou 2023 com lucros de 31 milhões de euros, receitas operacionais de 666,9 milhões de euros e um EBITDA ajustado de 99,8 milhões de euros. Os três indicadores cresceram a dois dígitos e a empresa poderá revelar planos de crescimento ambiciosos no prospeto do IPO, tendo em conta que vai encaixar 100 milhões de euros com a operação.
Assumindo uma avaliação de mil milhões de euros, a dona do Hospital da Luz apresenta um rácio que representa 32 vezes os lucros, 10 vezes o EBITDA e 1,5 vezes as receitas. O múltiplo dos lucros situa-se bem acima do registado pelo setor e do mercado em geral, mas nos outros indicadores estão mais alinhados. O índice Stoxx600 Health Care negoceia atualmente com um múltiplo de 8 vezes o EBITDA e 1,66 vezes as receitas.
Assinalando que “é muito impreciso saber qual a capitalização bolsista que a empresa vai atingir”, Vítor Madeira salienta que “se a euforia com o IPO e a expetativa sobre os resultados futuros for grande, é possível chegar a esse valor” dos mil milhões de euros.
Ressalvando que “cada caso é um caso e normalmente as empresas entram para a bolsa acima do seu valor fundamental”, o analista da XTB destaca que “olhando por exemplo para os CTT, que têm um EBITDA semelhante e um dividendo considerável, a capitalização bolsista não ultrapassa os 700 milhões de euros”.
Mesmo que não alcance a fasquia dos mil milhões de euros, a Luz Saúde terá como muito provável uma entrada na carteira do PSI, índice português que é composto atualmente por 16 empresas, mas não tem número fixo de membros. Além dos CTT, também a Ibersol está (bem) abaixo da fasquia dos dez dígitos de capitalização bolsista.
Quando ingressou na bolsa portuguesa, em 2014, a Luz Saúde apresentava um valor de mercado de 306 milhões de euros. Posteriormente, a Fidelidade pagou 480 milhões de euros para comprar a companhia e, em 2018, a seguradora controlada pelos chineses da Fosun vendeu 49% da Luz Saúde aos seus acionistas num negócio que avaliou a empresa em 545 milhões de euros.
A Luz Saúde opera 29 unidades, incluindo hospitais, clínicas ambulatórias e uma residência sénior e “chega a 75% da população portuguesa”, diz a empresa. Com uma equipa composta por 4.876 médicos, 2.587 enfermeiros, 1.308 técnicos e 1.126 camas, “lidera a prestação de cuidados de saúde em Portugal”.
A venda de ações da Luz Saúde será coordenada pelo Citigroup Global Markets e a UBS. Participam ainda o BNP Paribas, o Caixa BI, o Caixabank, o Hauck Aufhäuser Investment Banking (HAIB) e o Millenium bcp. A Evercore é o consultor financeiro.